segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Escutatória



Sempre vejo anunciados cursos de oratória.

Nunca vi anunciado curso de escutatória.

Todo mundo quer aprender a falar.

Ninguém quer aprender a ouvir.
Pensei em oferecer um curso de escutatória.
Mas acho que ninguém vai se matricular.
Escutar é complicado e sutil. Diz "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores.

É preciso também não ter filosofia nenhuma".
Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça sobre como são as coisas.
Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.
"Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito;

é preciso também que haja silêncio dentro da alma".
Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.

Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.
Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Um dia escutei uma história:
Uma experiência com os índios...

Reunidos os participantes, ninguém fala.
Há um longo, longo silêncio.
Aí, de repente, alguém fala.
Curto.
Todos ouvem.
Terminada a fala, novo silêncio.
Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais.
São-me estranhos.
É preciso tempo para entender o que o outro falou.
Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades:
Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou.
Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado".
Segunda: "Ouvi o que você falou.
Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo.
É coisa velha para mim.
Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou".
Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo.
O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer:
"Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou".
E assim vai a reunião.
Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio de dentro.
Ausência de pensamentos.
E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia antes.
Eu comecei a ouvir.
Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.
A música acontece no silêncio.
A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada.
Somos todos olhos e ouvidos.
Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.
Para mim, Deus é isto:
a beleza que se ouve no silêncio
Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.
Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.
Rubens Alves


Um comentário:

Malu e a Vida!!! disse...

Rita, grande lição esta do Rubens Alves. A necessidade de falar, deixa muito a desejar do escutar. E o que adianta, só falar, não é mesmo? Tem o silêncio que também amedronta...enfim, caminhemos para a Escutatória, que é de onde tiraremos os ensinamentos!!! Beijo grande!