sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O monstro da indiferença

mmm



Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta.

Um poeta é só isso: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar.


Vê, não vendo.


Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia sem ver.


Parece fácil, mas não é.


O que nos é familiar já não desperta curiosidade.

O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta.

Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe.

De tanto ver, você não vê.

Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo porteiro.


Dava-lhe "bom dia" e, às vezes, lhe passava um recado ou uma correspondência.

Um dia, o porteiro cometeu a descortesia de falecer.


Como era ele? Sua cara, sua voz, como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu.


Para ser notado, o porteiro teve que morrer.


Se um dia, no seu lugar estivesse uma girafa cumprindo o rito, pode ser que ninguém desse por sua ausência.

O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem.


Mas, há sempre o que ver: gente, coisas, bichos.


E vemos?

Não, não vemos.

Uma criança vê o que um adulto não vê, pois tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo.

O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de tão visto, ninguém vê.

Há pai que nunca viu o próprio filho, marido que nunca viu a própria mulher.

Isso exige muito.

Nossos olhos se gastam no dia-a-dia.


É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

Texto de Otto Lara Resende





I Don't Know How To Love Him


Um comentário:

Yamar Bijoux disse...

É bem isso aí mesmo!
Triste mas verdadeiro... nodia a dia e na "correria" a gente passa batido por muitas coisas. Ou sóvê mesmo o que interessa... infelizmente. Adorei a postagem.
Linda essa música.
Beijão e boa correria aí nessa sexta... sei que vai ser uma pauleira... Bjks, Ya