terça-feira, 6 de novembro de 2007

A moça tecelã



Fantástico texto para reflexão enviado pela minha querida Yara


Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite.


E logo se sentava ao tear.


Linha clara, para começar o dia.


Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.


Depois, lãs mais vivas; quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.


Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo.


Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que, em pontos longos, rebordava sobre o tecido.


Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.


Mas, se, durante muitos dias, o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados para que o sol voltasse a acalmar a natureza.


Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava seus dias.


Nada lhe faltava.


Na hora da fome, tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas.


E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido.


Se sede vinha, suave era a lã cor-de-leite que entremeava o tapete.


E, à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.


Tecer era tudo o que fazia.


Tecer era tudo o que queria fazer.


Mas, tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha e, pela primeira vez, pensou como seria bom ter um marido ao lado.


Não esperou o dia seguinte.


Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia.


E, aos poucos, seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado.


Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.


Nem precisou abrir.


O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma e foi entrando na sua vida.


Naquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.


E feliz foi, por algum tempo.


Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu.


Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.


— Uma casa melhor é necessária, disse para a mulher.


E parecia justo, agora que eram dois.


Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor-de-tijolo, fios verdes para os batentes e pressa para a casa acontecer.


Mas, pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.


— Por que ter casa, se podemos ter palácio?, perguntou.


Sem querer resposta, imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates de prata.


Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça, tecendo tetos e portas, e pátios, e escadas, e salas, e poços.


A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol.


A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia.


Tecia e entristecia, enquanto, sem parar, batiam os pentes, acompanhando o ritmo da lançadeira.


Afinal, o palácio ficou pronto.


E, entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.


— É para que ninguém saiba do tapete, disse.


E, antes de trancar a porta a chave, advertiu:


— Faltam as estrebarias.


E não se esqueça dos cavalos!


Sem descanso, tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos; os cofres, de moedas; as salas, de criados.


Tecer era tudo o que fazia.


Tecer era tudo o que queria fazer.


E, tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros.


E, pela primeira vez, pensou como seria bom estar sozinha de novo.


Só esperou anoitecer.


Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências.


E, descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear. Desta vez não precisou escolher linha nenhuma.


Segurou a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado para outro, começou a desfazer o seu tecido.


Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.


Depois, desteceu os criados e o palácio.


E todas as maravilhas que continha.


E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.


A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou e, espantado, olhou em volta.


Não teve tempo de se levantar.


Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas.


Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.


Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara.


E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz que a manhã repetiu na linha do horizonte.


***(in Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento,Marina Colasanti, Ed. Nórdica, RJ, 1982)
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